Eduardo Ritter

O imortal Scliar

Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Enquanto o ônibus balançava, eu estava dentro do harém do rei Salomão, filho de Davi (aquele mesmo que matou o gigante Golias com uma pedrada no meio da fuça) que governou Israel entre 971 e 931 a.C. Salomão era conhecido por sua sabedoria e pelo apreço aos prazeres propiciados pelos relacionamentos carnais. Em seu harém, havia cerca de 700 esposas além de três centenas de concubinas. Ou seja, não precisa ser um gênio da matemática para saber que ele tinha à sua disposição mil mulheres. Reza a lenda que Salomão era belo e sedutor e que cada uma dessas mil mulheres ansiava por ser chamada a cada noite que passava. Algumas esperavam dias ou semanas, enquanto outras aguardavam meses e até anos para receber o chamado do marido ou do amante. E, dizem, voltavam para o harém com um sorriso de orelha a orelha. Eu balançava no ônibus onde estava indo para o congresso da Intercom Sul, em Guarapuava-PR, e acompanhava a saga de uma dessas mil mulheres que foi escolhida para contar, em primeira pessoa, os bastidores do harém mais famoso e cobiçado da história.

Nas 28 horas entre ida e volta até Guarapuava, devorei as 160 páginas do livro A mulher que escreveu a bíblia, de Moacyr Scliar (1937-2011). Fazia tempo que não lia uma obra do médico e escritor que integrou a Academia Brasileira de Letras. Confesso que não me impressiono com títulos, muito menos por uma entidade famosa por beneficiar apadrinhados e fazer escolhas não muito relacionadas ao mérito literário, mas no caso de Scliar, ele mereceu o título de imortal. Lendo A mulher que escreveu a bíblia reforcei a ideia que já tinha de Scliar, que tive a honra de entrevistar algumas vezes: ele tinha uma habilidade incrível de captar boas histórias e, mais do que isso, de conta-las magistralmente. O que não é pouca coisa, pois já peguei vários livros com ideias geniais que foram transformadas em narrativas monótonas e chatas. Com Scliar, isso não acontece.

No caso do harém de Salomão, ele criou uma personagem que foi entregue pelo pai ao rei como esposa em troca de apoio político. Entretanto, ela chamava a atenção não pela beleza, mas sim pela falta dela, tornando-se a única mulher feia dentre as mil moradoras do harém do filho de Davi. Em contrapartida, ela era a única letrada e, mais do que isso, em certo momento Salomão descobriu que ela tinha uma habilidade inigualável com as palavras. Assim, ela é convocada para escrever a história dos descendentes do rei, do surgimento da humanidade, até aquele momento. Com um humor refinado, que mescla cenas bizarras envolvendo sexo e palavrões com fatos históricos, Scliar faz com que você viaje algumas horas de ônibus sem perceber que o tempo está passando. Quando terminei de ler o romance, suspirei e concluí: escritores como Moacyr Scliar são raros, tão raros quanto foi a esposa feia de Salomão que, na criação fictícia do autor, escrevia a bíblia de uma maneira diferente da convencional. Por isso ele segue sendo imortal, um escritor - como alguns poucos outros - que são muito maiores do que qualquer entidade que pretenda dar status para uma atividade que geralmente se destaca pela simplicidade e pelo caráter humano, como é o caso da também imortal literatura.

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